INTRODUÇÃO
Questão
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o sigilo bancário gerou debates sobre sua constitucionalidade e se pode ser oposto aos Fiscos federal, estaduais, distrital e municipais.
Relevância social
A questão é de enorme repercussão prática.
Ao conhecer a movimentação bancária de determinada pessoa, física ou jurídica, a Administração Tributária pode perceber se determinados fatos geradores de obrigações tributárias tiveram sua existência oculta do seu conhecimento, o que naturalmente não ocorre para todos os impostos.
Não parece viável considerar a movimentação bancária como indício de sonegação do IPTU, uma vez que o fato gerador desse imposto está vinculado à posse ou domínio de imóveis na zona urbana, conforme o Código Tributário Nacional. Não há uma relação direta entre recursos financeiros em instituições bancárias e a posse de imóveis, tornando a movimentação bancária um indicativo pouco relevante para a identificação de sonegação desse tributo
Análises da movimentação bancária do contribuinte podem indicar possíveis fatos geradores do imposto de renda omitidos da Receita Federal. Se essa movimentação não se justificar com recursos anteriores, rendimentos declarados, doações ou empréstimos, é provável que derive de rendimentos não declarados.
Historicamente, a Autoridade Tributária, particularmente a Receita Federal, teve como objetivo exigir que as instituições financeiras divulgassem as atividades bancárias dos contribuintes. Por outro lado, muitas empresas e indivíduos opuseram-se a isto, muitas vezes não declarando explicitamente a sua oposição, mas essencialmente com o objectivo de dificultar a facilidade de combate à evasão fiscal.
O SIGILO BANCÁRIO PERANTE O FISCO NA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA
Lei nº 4.595/1964
A legislação ao abrigo da Constituição há muito que permite às autoridades fiscais o acesso às informações bancárias dos contribuintes, embora não de forma irrestrita. A Lei 4.595/1964, que modernizou o Sistema Financeiro Nacional e foi o primeiro texto legal brasileiro a abordar explicitamente o sigilo bancário, estabeleceu essa prática.
Código Tributário Nacional de 1966
O Artigo 197 do Código Tributário de 1966 determina que as instituições financeiras forneçam informações à autoridade administrativa mediante notificação por escrito sobre ativos, negócios ou atividades de terceiros. No entanto, o número isenta a informação protegida pelo sigilo profissional, tornando-a insuficiente para a requisição de dados protegidos pelo sigilo bancário
Lei Complementar nº 105/2001
O advento do Complemento Legal 105 de 2001 teve como objetivo abordar o tratamento específico das operações das instituições financeiras, comumente denominado sigilo bancário. Surgiram dois artigos cruciais para regulamentar o sigilo bancário perante o fisco. O artigo 6º não trazia novidade, repercutindo essencialmente o artigo 38 da antiga Lei 4.595/1964, que permitia a requisição de informações bancárias durante procedimento tributário. Embora hoje seja uma lei complementar formal, entende-se que, assim como o Código Tributário, a Lei 4.595/1964 foi recebida como lei complementar.
Contudo, o artigo 5º da LC 105/2001 introduziu alterações significativas, obrigando o compartilhamento periódico de informações exclusivamente à administração tributária da União sobre as operações financeiras dos usuários, limitando-se à identificação dos titulares e dos valores globais mensais movimentados, vedada qualquer identificação de sua origem ou natureza da despesa. Ao identificar irregularidades fiscais, informações, documentos e auditorias adicionais poderão ser requisitados. Este Artigo 5º tornou-se uma ferramenta poderosa para a Receita Federal, possibilitando não apenas o exame isolado, mas também massivo, das transações bancárias dos contribuintes.
Como esperado, esta nova lei enfrentou desafios significativos, incluindo múltiplas ações diretas alegando a violação do sigilo bancário constitucionalmente protegido.
Sigilo Bancário na Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988
A Constituição da República não se refere especificamente ao sigilo bancário, razão pela qual há aqueles que entendem que ele não tem proteção dessa estatura.
Nesse sentido, por exemplo, o voto do Min. Francisco Resek no MS nº 21.729, impetrado pelo Banco do Brasil contra ato do Procurador-Geral da República que lhe requisitou informações, em que afirma que “a questão jurídica trazida à corte neste mandado de segurança não tem estatura constitucional. Tudo quanto se estampa na própria Carta de 1988 são normas que abrem espaço ao tratamento de determinados temas pela legislação complementar. É neste terreno, pois, e não naquele da Constituição da República, que se consagra o instituto do sigilo bancário. […] Tenho dificuldade extrema em construir, sobre o artigo 59, sobre o rol constitucional de direitos, a mística do sigilo bancário somente contornável nos termos de outra regra da própria Carta. […] O inciso X do rol de direitos fala assim numa intimidade onde a meu ver seria extraordinário agasalhar a contabilidade, mesmo a das pessoas naturais, e por melhor razão a das empresas”.
Na mesma direção o voto do Min. Teori Zavascki no RE 601.314, em que consigna que “no que se refere à questão da privacidade dos dados bancários, a matéria não pode ser focada com base no art. 5º da Constituição. Como eu disse, há um perfil eminentemente infraconstitucional”.
Todavia, a imensa maioria parece entender que o sigilo bancário está albergado pelos incisos X e/ou XII do art. 5º da Constituição:
“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[…]
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
o inciso XII do art. 5º da Constituição é especialmente polêmico. Há quem entenda que ele estabelece o chamado “sigilo de dados”, enquanto outros pensam que ele estabelece apenas o sigilo da comunicação de dados, tendo a palavra “comunicação” sido omitida apenas para evitar sua excessiva repetição. Aponta-se que, além dessa interpretação ser mais consentânea com o restante do dispositivo, que se refere a diversas formas de comunicação (por carta, telégrafo e telefone), a existência de um sigilo de dados tornaria confidencial toda e qualquer informação, pois dados nada mais são que informações registradas de alguma forma.
Nesse sentido, por exemplo, o voto do Min. Francisco Resek no já citado MS 21.729:
“Do inciso XII, por seu turno, é de ciência corrente que ele se refere ao terreno das comunicações: a correspondência comum, as mensagens telegráficas, a comunicação de dados, e a comunicação telefônica. Sobre o disparate que resultaria do entendimento de que, fora do domínio das comunicações, os dados em geral – e a seu reboque o cadastro bancário – são invioláveis, não há o que dizer. O funcionamento mesmo do Estado e do setor privado enfrentaria um bloqueio. A imprensa, destacadamente, perderia sua razão de existir.
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO ACESSO DO ESTADO AOS DADOS DOS CONTRIBUINTES
O dispositivo constitucional considerado o principal fundamento explícito para permitir o acesso do Estado às informações dos contribuintes é o § 1º do art. 145 da Constituição:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
[…]
Este dispositivo constitucional fundamenta o debate sobre o acesso aos dados bancários pela Administração tributária. Uma linha de argumentação defende que, se a Administração tributária pode identificar rendimentos e atividades econômicas, deve ter acesso aos dados bancários. Por outro lado, há corrente que se opõe, ressaltando que a Constituição, ao incluir “respeitados os direitos individuais”, protege o sigilo bancário como um desses direitos
MUDANÇA DA INTERPRETAÇÃO JUDICIAL SOBRE A LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA AO LONGO DO TEMPO
A evolução da jurisprudência do STF sobre o acesso do fisco a informações protegidas pelo sigilo bancário culminou em sua consolidação em 24/02/2016. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 601.314, relatado pelo Min. Edson Fachin, e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, foi crucial nesse processo.
Uma observação relevante é que o STF nunca negou a possibilidade de quebra do sigilo bancário por ordem judicial. Mesmo ministros que reconhecem a existência de um sigilo de dados conforme o inciso XII do art. 5º da Constituição o admitem, ressaltando a ausência de direitos absolutos. A exceção é o Min. Marco Aurélio, que, considerando o sigilo de dados e a literalidade do inciso XII, defende a quebra do sigilo bancário apenas para investigações criminais ou instruções processuais penais.
Nesse sentido, confira-se a ementa do RE 389.808 elaborada pelo eminente Ministro:
“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. […]” (Destaquei).
Praticamente pacífico que o sigilo bancário poderia ser quebrado mediante ordem judicial, a grande discussão que se colocou ao lon go dos anos foi a existência ou não de cláusula de reserva de jurisdição: saber se o sigilo poderia ser quebrado apenas pelo Estado-Juiz ou também diretamente pela Administração, como previsto na legislação infraconstitucional.
A discussão colocou-se não apenas quanto ao Fisco, objeto direto desta resenha, mas também a outros entes, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público.
Quanto a esse último, é de se registrar o julgamento do Mandado de Segurança 21.729, ocorrido em 2005, no qual, por maioria, o STF resolveu que, tratando-se de apuração da destinação de verbas públicas, o Ministério Público pode requisitar informações diretamente das instituições financeiras. O acórdão, de que ficou redator o Min. Néri da Silveira, tem a seguinte ementa:
“Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Instituição financeira executora de política creditícia e financeira do Governo Federal. Legitimidade do Ministério Público para requisitar informações e documentos destinados a instruir procedimentos administrativos de sua competência. 2. Solicitação de informações, pelo Ministério Público Federal ao Banco do Brasil S/A, sobre concessão de empréstimos, subsidiados pelo Tesouro Nacional, com base em plano de governo, a empresas do setor sucroalcooleiro. 3. Alegação do Banco impetrante de não poder informar os beneficiários dos aludidos empréstimos, por estarem protegidos pelo sigilo bancário, previsto no art. 38 da Lei nº 4.595/1964, e, ainda, ao entendimento de que dirigente do Banco do Brasil S/A não é autoridade, para efeito do art. 8º, da LC nº 75/1993. 4. O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº 75/1993. 5. Não cabe ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo erário federal, sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art. 37 da Constituição. 6. No caso concreto, os empréstimos concedidos eram verdadeiros financiamentos públicos, porquanto o Banco do Brasil os realizou na condição de executor da política creditícia e financeira do Governo Federal, que deliberou sobre sua concessão e ainda se comprometeu a proceder à equalização da taxa de juros, sob a forma de subvenção econômica ao setor produtivo, de acordo com a Lei nº 8.427/1992. 7. Mandado de segurança indeferido.”
O mesmo entendimento foi adotado quanto ao Tribunal de Contas da União no julgamento, na 1ª Turma do STF, do MS 33.340, da relatoria do Min. Luiz Fux.
Embora não caiba exame detalhado da matéria, que o objeto direto do exame proposto, vale registrar que o Supremo Tribunal também já decidiu ser possível o Ministério Público requisitar informações não apenas sobre as operações com as verbas públicas enquanto tinham essa natureza, podendo fazê-lo, também, com as transações entre particulares que seriam oriundas de desvio dessas. Nesse sentido, por exemplo, o RHC 133.118, Rel. Min. Dias Toffoli:
“Recurso ordinário em habeas corpus. Ação penal. Associação criminosa, fraude a licitação, lavagem de dinheiro e peculato (arts. 288 e 313-A, CP; art. 90 da Lei nº 8.666/93; art. 1º da Lei nº 9.613/98 e art. 1º, I e II, do DL nº 201/67). Trancamento. Descabimento. Sigilo bancário. Inexistência. Conta corrente de titularidade da municipalidade. Operações financeiras que envolvem recursos públicos. Requisição de dados bancários diretamente pelo Ministério Público. Admissibilidade. Precedentes. Extensão aos registros de operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. Princípio da publicidade (art. 37, caput, CF). Prova lícita. Recurso não provido. […] 5. O poder do Ministério Público de requisitar informações bancárias de conta corrente de titularidade da prefeitura municipal compreende, por extensão, o acesso aos registros das operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. 6. De nada adiantaria permitir ao Ministério Público requisitar diretamente os registros das operações feitas na conta bancária da municipalidade e negar-lhe o principal: o acesso ao real destino dos recursos públicos, a partir do exame de operações bancárias sucessivas (v.g., desconto de cheque emitido pela Municipalidade na boca do caixa, seguido de transferência a particular do valor sacado). 7. Entendimento em sentido diverso implicaria o esvaziamento da própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas. 8. Inexistência de prova ilícita capaz de conduzir ao trancamento da ação penal. 9. Recurso não provido.
Ingressando mais diretamente na questão da relação entre o sigilo bancário e o fisco, o exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao longo das décadas seria por demais extenso, pelo que justificável o exame apenas de julgamentos efetuados após a promulgação da Lei Complementar nº 105, concluídos nesta década.
AÇÃO CAUTELAR 33
Um primeiro julgado relevante é a Ação Cautelar 33, ajuizada por empresa com o fito de emprestar efeito suspensivo ao RE 389.808, pelo qual contestado acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que considerou valido o acesso da autoridade fiscal à sua movimentação bancária, com base nas Leis 8.021/1990, 9.311/1996, 10.174/2001 e LC 105/20014.
O relator, Min. Marco Aurélio, deferiu a liminar pleiteada e levou-a ao plenário, iniciando julgamento que, iniciado em 2003, só terminou sete anos depois, em virtude de sucessivos pedidos de vista. O acórdão produzido recebeu ementa que não revela a riqueza das discussões travadas, uma vez que dá a entender que o exame se centrou em questões processuais, o que não corresponde à verdade.
O julgamento foi iniciado em 24/03/2009, ocasião em que o Min. Marco Aurélio expôs que a regra é de que o sigilo só pode ser afastado por decisão judicial, havendo exceção apenas para requisição do Ministério Público quando envolvidos recursos públicos.
Seguiu-se pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa, sendo o julgamento retomado em 03/12/2003. O voto centrou-se em questões processuais – o que explica a ementa produzida, já que ele restou redator para o acórdão – considerando inexistentes seja o fumus boni iuris, seja o periculum in mora. Considerou o Min. Joaquim Barbosa que, inexistente qualquer decisão sobre as ADI 2.386, 2.389, 2.397 e 2.406, que contestavam a LC 105, não seria possível falar em verossimilhança do alegado. Seu voto foi acompanhado pelo Min. Carlos Ayres Britto.
Apresentado novo pedido de vista, o julgamento foi retomado em fevereiro de 2014, quando o Min. Cezar Peluso acompanhou o relator, reportando-se a precedentes da Corte – MS 21.729, MS 23.851, Pet 2790 AgR e RE 215.301 – em que “assentou-se que a proteção aos dados bancários configura manifestação o direito à intimidade e ao sigilo de dados, previsto nos incs. X e XII do art. 5º da Constituição Federal, só podendo cair à força de ordem judicial ou decisão de Comissão Parlamentar de Inquérito, ambas com suficiente fundamentação”.
Em novo voto-vista, o Min. Gilmar Mendes trouxe a baila o art. 145,
- 1º, da Constituição. À luz desse dispositivo considerou o Min. Gilmar Mendes que “a alegada incompatibilidade entre o art. 6º da LC 105/2001 e o Decreto nº 3.374/2001 com a Carta Magna não são patentes, muito menos evidentes”, concluindo que “prima facie, não há vedação para que a lei disponha sobre o acesso da administração tributária a essas informações protegidas dos contribuintes”.
Negado o referendo pelo Min. Gilmar Mendes, a Min. Carmen Lúcia votou na mesma direção. Todavia, o Min. Ricardo Lewandowski acompanhou o Min. Marco Aurélio, não sem lembrar que o Judiciário estaria à disposição, com seus 16.000 magistrados, para, “se as circunstâncias e o caso assim autorizarem, determinar a quebra do sigilo”.
Na mesma ocasião, em debates orais, o Min. Cezar Peluso recordou que, no RE 418.416, Rel. Sepúlveda Pertence, e no MS 22.801, o Tribunal estabeleceu distinção entre dados e comunicação de dados, considerando que o inciso XII do art. 5º refere-se apenas aos segundos. Disse o Min. Peluso: “se os dados como tais […] forem invioláveis, não há nenhum meio possível, por exemplo, de fiscalização tributária, porque os dados são objeto dos registros, isto é, se o Fisco não tem direito de proceder a fiscalização in loco e ter acesso a dados, a fiscalização é simplesmente inviável. O que a Constituição protege […] é o processo de comunicação. Esse é que não pode ser interrompido, porque aí há inviolabilidade de comunicação. Mas o acesso aos dados, findo o processo de comunicação, nem sempre é proibido”.
Em seguida, o Min. Dias Toffoli apresentou voto curto, mas que já apresentava a idéia central que viria a prevalecer na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Considerou o Min. Toffoli que a disponibilização dos dados ao Fisco não significava quebra de sigilo, pois as informações seriam conhecidas por esse com o dever de manter o segredo, da mesma maneira que as instituições financeiras conhecem os dados de seus clientes e tem o dever de mantê-los confidenciais.
Disse ele, negando referendo à liminar: “não se trata de quebra de sigilo, trata-se, na verdade, de uma transferência de dados sigilosos de um determinado portador desses dados, que tem o dever de sigilo, para um outro, que manterá a obrigação desse sigilo. A eventual divulgação desses dados dará azo a que incida o tipo penal e permitirá, inclusive, a responsabilização civil e administrativa do infrator”.
Em mais um voto-vista, em 24/11/2010, a Min. Ellen Gracie comungou da tese da transferência e não quebra do sigilo. Considerou a Min. Ellen Gracie que “a inviolabilidade da vida privada e o sigilo de dados devem ser preservados, porque constitucionalmente assegurados, mas não como empecilho a uma tributação capaz de concretizar os princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva, tampouco como escudo para o descumprimento do dever, também, fundamental e constitucional, de pagar impostos”.
O Min. Celso de Mello, por sua vez, em douto voto, considerou que todas as pessoas – inclusive as jurídicas – têm direito a uma intimidade financeira e que a quebra do sigilo bancário – sujeita à reserva de jurisdição – só pode ser decretada se essa medida se qualificar como providência essencial e indispensável à fiscalização e desde que não exista meio mais gravoso para a consecução desse objetivo.
Em conclusão, restou não referendada a medida liminar deferida pelo Min. Marco Aurélio, com a aparente sinalização de que o Supremo Tribunal Federal admitiria a constitucionalidade da LC 105/2001.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 389.808
Concluído o julgamento da AC 33 em 24.11.2010 e não tendo sido referenda a liminar para emprestar efeito suspensivo ao RE 389.808, o Min. Marco Aurélio priorizou o julgamento do próprio recurso extraordinário, levando-o já no mês seguinte. No julgamento desse, ao contrário do que parecia sinalizado pelo julgamento da cautelar, o resultado do julgamento foi de que “conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte”.
Um dos fatores para a alteração da conclusão esperada foi o fato do Min. Gilmar Mendes ter revisto seu posicionamento para acompanhar o Min. Marco Aurélio no sentido da existência de reserva de jurisdição para quebra do sigilo bancário, embora ressalvando que discordava quanto à necessidade de haja uma investigação de índole criminal.
Todavia, para o resultado foi essencial a circunstância da ausência eventual do Min. Joaquim Barbosa, cuja posição conhecida era a favor da corrente minoritária. Tanto era assim que a Min. Ellen Gracie chegou a pedir vista afirmando textualmente que “eu peço vista destes autos apenas para permitir a presença do Colega ao julgamento. Para que o Tribunal não tenha resultados diferentes conforme sua composição eventual”.
A Min. Ellen Gracie terminou por retirar o seu pedido de vista, diante de alegações de perecimento do direito do contribuinte se deferida a vista, mas consignando que “a questão está para ser decidida com um quórum que me parece inadequado”.
Ao final, o RE 389.808 foi provido para conceder a segurança, mas não se pode dizer que tenha sido firmada posição da Suprema Corte, uma vez que o julgamento se deu por 5 a 4, com a Corte com um cargo não preenchido e ausente um Ministro que, tudo indicava, teria aderido à corrente vencida.
Registre-se que ainda não houve o trânsito em julgado do acórdão, pois foram opostos embargos de declaração, que, em setembro de 2018, ainda não haviam sido julgados.
RE 601.314 E ADI 2.390, 2.386, 2.397 E 2.859
Posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal só veio a surgir em fevereiro de 2016, quando foram julgados, em conjunto, o Recurso Extraordinário 601.314 – em regime de repercussão geral – e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. O primeiro, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, e as demais, do Min. Dias Toffoli.
O julgamento foi bastante exauriente, tendo se dado em 3 sessões, sendo a primeira dedicada às sustentações orais e as demais aos votos dos Ministros. Em 16/02/2018, o contribuinte que interpôs o RE 601.314 e a Confederação Nacional da Indústria – autora da ADI 2.397
– defenderam que a LC 105/2001 contraria os arts. 5º, X e XII, da Constituição, violando os direitos à intimidade e ao sigilo de dados, estabelecendo um estado de fiscalização permanente. Por sua vez, as representantes da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional defenderam a tese lançada pelo Min. Dias Toffoli na AC 33, ou seja, inexistir quebra de sigilo bancário, mas transferência deste ao Fisco, de maneira a permitir que esse possa averiguar corretamente o cumprimento das obrigações tributárias.
Manifestaram-se, ainda, como amicus curiae, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Banco Central do Brasil, respectivamente, contra e a favor da constitucionalidade da LC 105. Como custos legis, o Procurador-Geral da República opinou pela constitucionalidade, lembrando estar a norma de acordo com a prática de países democráticos.
O julgamento propriamente dito ocorreu nas sessões de 14 e 24/02/2018, com a conclusão pela constitucionalidade da lei complementar por um placar de 9 x 2. Os relatores, Ministros Dias Toffoli e Edson Fachin, deram pela constitucionalidade da transferência de dados bancários ao Fisco, no que foram acompanhados pelos Ministros Luis Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Restaram vencidos apenas os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio.
A margem favorável à Fazenda pode ser considerada algo surpreendente, tendo sido alcançada não apenas em função da mudança da composição do STF em relação ao julgamento do RE 389.808, como pelo fato de que os Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski reformularam seus entendimentos.
Por razões de espaço, impossível o exame da rica argumentação exposta desenvolvida, tendo os acórdãos proferidos quase duas centenas de páginas, ainda assim porque o Ministro Luiz Fux limitou-se a reportar ao voto que proferiu, ainda enquanto no STJ, como relator do Recurso Especial 1.134.665, julgado como representativo de controvérsia.
As ideias centrais, como seria de se esperar, constam das ementas produzidas:
a) o sigilo bancário é uma das expressões do direito de personalidade;
b)o fornecimento das informações sobre operações financeiras encontra amparo no art. 145, § 1º, da Constituição;
c) o fornecimento de informações ao Fisco previsto nos 5º e 6º da Lei Complementar 105/2001 não configura quebra de sigilo bancário, mas um translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal, permanecendo resguardadas a intimidade e a vida privada do correntista;
d) correlatos aos inúmeros direitos previstos na Constituição são os deveres igualmente estabelecidos, dentre os quais está o dever fundamento de pagar tributos, essenciais para o financiamento das ações estatais em prol do cidadão;
e) necessários mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal, sendo o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/ 2001 extremamente importante para tanto;
f) o Brasil se comprometeu na esfera internacional a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas;
g) fixou-se a tese de que “o 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”.
Foi ressaltado que, desde a edição da LC 105/2001, a União estabeleceu, através do Decreto 3.724/2001, normas para resguardar garantias processuais e o sigilo dos dados bancários do contribuinte, mas o mesmo não poderia ser dito dos Estados e Municípios, pelo que o STF estabeleceu que estes somente poderão obter as informações de que trata o art. 6º da LC105/2001 – o art. 5º só é aplicável à União – quando a matéria estiver devidamente regulamentada por eles, em condições análogas às do citado decreto.
CONCLUSÃO
Em resumo, expomos para você sobre o sigilo bancário do contribuinte no processo administrativo fiscal.
FONTES DA REALIDADE
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. REsp 1.134.665. Recorrente: Fazenda Nacional. Recorrida: Míriam Leila Durval Vasconcellos. Relator Min. Luiz Fux. Julgado em 25/11/2009. DJe 18/12/2009.
Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. MS 21.729. Impetrante: Banco do Brasil S.A., Impetrado: Procurador-Geral da República. Redator para o acórdão Min. Néri da Silveira. Julgado em 05/10/1995. DJ 19/10/2001.
Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. MS 33.340. Impetrante: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Impetrado: Tribunal de Contas da União. Relator Min. Luiz Fux. Julgado em 26/05/2015. DJe 03/08/2015.
Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. RHC 133.118. Recorrente: Samuel Carlos Tenório Alves de Alencar. Recorrido: Ministério Público Federal. Relator Min. Dias Toffoli. Julgado em 26/05/2017. DJe 09/03/2018.
Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Cautelar 33. Autora: GVA Indústria e Comércio. Ré: União. Redator para o acórdão Min. Joaquim Barbosa. Julgado em 24/11/2010. DJe 10/02/2011.
Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. RE 389.808. Recorrente: GVA Indústria e Comércio. Recorrida: União. Relator Min. Marco Aurélio. Julgado em 15/12/2010. DJe 10/05/2011.
Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. RE 601.314 – Repercussão Geral. Recorrente: Márcio Holcman. Recorrida: União. Relator Min. Edson Facchin. Julgado em 24/02/2016. DJe 16/09/2016.
Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. ADI 2.390. Requerentes: Partido Social Liberal e outros. Interessado: Presidente da República. Relator Min. Dias Toffoli. Julgado em 24/02/2016. DJe 21/10/2016.
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